cinema · resenhas

Por entre os fios, a solidão

Medianera, o lado de um prédio que apresenta as falhas, as rachaduras, o que se tenta esconder com merchandising, propagandas falsas. Duas pessoas com dificuldade de mostrar seus sentimentos, veem a existência engolida pela multidão da cidade, aceitam viver anônimos. Essas frases não correspondem apenas a um filme e sim, dois: Românticos anônimos e Medianeras.

Jean-René e Angélique fazem parte do primeiro. São emotivos demais, sentem a ansiedade em cada parte de seus dias. A insegurança não permite que exponham seus talentos e, quando amam, optam pelo sentimento oculto, anônimos em tudo. O medo de enfrentar o que vem à tona faz Angélique cantarolar para si mesma I have confidence, do musical A Noviça Rebelde. Como se houvesse uma voz em si mesma – que ela desconhece – capaz de proporcionar confiança e salvá-la dos possíveis fracassos pelos quais pode passar se der um passo adiante em sua vida. Jean-René cresceu sob a cautela exagerada dos pais, que comemoravam se não ocorresse nada de diferente em suas vidas, pois assim significava que estavam em segurança. Para Angélique e Jean-René, viver em segurança é a forma que encontram de não enfrentar o inesperado do lado de fora. Optam pelo que é cômodo e duradouro. Mas como agir se duas pessoas inseguras e com medo de arriscar se apaixonam?

Martin e Mariana também são solitários. Vivem numa Buenos Aires emaranhada por fios que – dito pela própria Mariana – serviriam para unir as pessoas, o que não ocorre, apenas separam as pessoas na cidade, colocando cada um em seu devido lugar. Martin tem como companhia uma cadelinha e o computador. As músicas que ouve servem como refúgio para um cotidiano vazio, cheio de fobias. Leva a vida de forma metódica e evita ao máximo sair de casa. Ele vê na fotografia uma maneira de encarar o mundo à sua maneira e tentar transformar a realidade que vê. Mariana ama observar os prédios, pois é formada em arquitetura. Mas, como tudo em sua vida, vive de projetos. Trabalha como vitrinista de uma loja. Em casa guarda os manequins masculinos e femininos, que mudam de roupa de acordo com a estação. Na casa da jovem, os manequins se encontram despidos, talvez demonstrando as fragilidades que Mariana tem. Ela se sente observada apenas quando se encontra na vitrine, montando uma realidade paralela à da ampla Buenos Aires, e insiste em procurar o Wally por entre a multidão representada no livro “Onde está Wally?”, aguardando por alguém que mude sua vida repentinamente.

Esses quatro personagens, apesar de constituírem filmes de nacionalidades diferentes – um é francês e o outro é argentino – conseguem transmitir com delicadeza, profundidade e inteligência a solidão em meio às relações sociais. Não é difícil se identificar com tais personagens. Uma cidade que vê o seu passado, seja o chocolate maravilhosamente criado há muito tempo e existente na memória de gerações, ou os prédios históricos apagados pela novidade do edifício recém-construído, demonstra a necessidade que as pessoas sentem de conseguir dizer quem são, construir uma identidade e deixar-se interligar por outras pessoas.

Angélique, Jean-René, Martin e Mariana representam os temores, as falhas e os sonhos humanos. Pode-se dizer que os quatro aguardam por alguém que os resgate da monotonia e infelicidade cotidianas. Por entre pessoas desconhecidas e encontros efêmeros, resta buscar a autonomia enfrentando os próprios medos. Esperar por alguém como o Wally, que tanto se ocultara quando se olhou fixamente para uma mesma página, talvez não seja a primeira solução. Tirar a vida da página dos projetos significa olhar as maiores falhas que se possui, tais quais as rachaduras que se deseja ocultar em medianeras. Para encontrar o Wally, há várias opções: a sorte, um olhar clínico,
a análise metódica de cada centímetro da página. Mas, principalmente, a busca por Wally significa encontrar a própria identidade em meio à multidão.

Resenha compartilhada pelo perfil Medianeras, no facebook, aqui!

4 comentários em “Por entre os fios, a solidão

  1. Má achei muito válida a comparação entre os dois filmes. Apesar não ter assistido românticos anônimos, creio pela sua descrição que a solidão interior representada em cada um dos filmes fala um pouquinhos da dificuldade de nós nos abrimos para sermos nós mesmos no mundo atual e o conflitos que temos para nos aceitarmos como realmente somos.
    Essa questão que vc levanta ao final sobre a eterna busca de uma identidade é interessantissima. E o cinema cada vez mais tenta retratar a simplicidade de ser vc mesmo e encontrar alguém te aceite assim. Simples e sem fingimentos.
    Eu sou suspeita para falar, mas amei medianeira e tb adoro a temática de como o excesso de informação virtual e a falta comunicação física distancia cada vez mais as pessoas nos tempos atuais. Como proto-comunicadora não pude deixar passar esta questão em branco. Acho que medianeiras demonstra bem o fato de cada vez as pessoas se esconderem atras das telas dos computadores por medo de não serem aceitas como são e assim, não se encaixando em um padrão social que querendo ou não ainda existe. Você concorda com isso? No caso de medianeiras, como vc vê essas questão da comunicação e do amor virtual que o filme propõe?

    Bom é isso má gostei muito da resenha e deixo registrada essas questões para uma futura reflexão nossa. rs

    Curtir

    1. Adorei o seu comentário, Renata! Acho que o filme Medianeras transmite mesmo essa ideia de que há mundos diferentes numa cidade. Esta cresce e vai envolvendo as pessoas que nela vivem e, como o convívio se torna muito efêmero, as pessoas acabam se concentrando numa própria realidade. Os personagens demonstram isso e não deixa de ser verdade. A comunicação, no dia a dia, passa a ser escassa, enquanto a informação disseminada pela internet a cada segundo cresce. E o filme faz a gente questionar qual é o valor do que vemos a cada segundo numa cidade, o valor dos prédios históricos, das pessoas. Acho que o Wally vem pra mostrar isso, por um momento ele se torna válido na multidão, mesmo sendo uma pessoa com estilo peculiar (a começar pela roupa haha). É uma boa sacada do filme ser feito a partir das manias e infelicidades de Martin e Mariana, porque se torna mais próximo da realidade e debate justamente como a nossa identidade é vista pelo outro.

      Curtir

  2. Fantasticas resenhas! Pena não ter assistido o “Romãnticos Anônimos”, mesmo assim posso dizer que você fez uma ótima relação entre os filmes que com argumentos distintos, tratam do mesmo tema.

    Curtir

Deixe um comentário