Matéria publicada no site Fashionatto
Quando um filme biográfico é divulgado, logo a primeira expectativa que temos é se o ator ou atriz principal conseguirá representar bem o papel. Talvez essa seja uma das grandes dificuldades: inserir-se no mundo do personagem e lidar com a pressão de trazer à tona o lado humano de um ícone. Para isso, a aparência é um dos primeiros pontos levados em conta. Obviamente, aliada ao estudo artístico que busca os trejeitos do personagem e a vestimenta certa, temos uma representação verossímil do personagem. No cinema, vemos muitos exemplos. Frida Kahlo, Charles Chaplin, Margaret Thatcher, Ray Charles, Johnny Cash. E muitos outros que podem ser vistos logo no final da matéria.
Um dos pontos em que pensamos é se o ator precisa mesmo já ser semelhante ao personagem que irá interpretar. Não necessariamente. A atriz Meryl Streep, por exemplo, se encontra quase irreconhecível no papel de Margaret Thatcher no filme A Dama de Ferro, no momento em que aparece idosa. Mas não chega a ser tão chocante quanto a caracterização de Cate Blanchett como Bob Dylan, sendo assim, irrelevante se é uma mulher que interpreta um papel masculino. Ou o ator Joaquin Phoenix, que não é muito parecido com Johnny Cash, mas sua interpretação traz o cantor à vida de uma forma assustadoramente real, pela forma com que ele cantava e segurava o violão. Ou ainda Michelle Williams, diferente de Marilyn Monroe, mas que conseguiu reproduzir com naturalidade o timbre de voz da atriz icônica.
Os exemplos dados demonstram que o denominador comum para que dê certo a caracterização é o que imaginávamos: o talento do ator. Sem deixar de lado o trabalho dos figurinistas e maquiadores, claro. O que não podemos esquecer é que se o ator não sabe como dar vida ao personagem, ele se torna uma caricatura. A roupa pode estar certa, mas o tom do personagem, não. Essa é a parte delicada do trabalho artístico: lembrar-nos que se trata de uma ficção, mas que o essencial do ícone está lá, na interpretação.
O último filme que assisti, o qual retratava uma personagem real, foi o alemão Hannah Arendt, ainda em cartaz em poucas salas. O filme trata da história da filósofa judia Hannah Arendt, a qual se envolveu numa grande polêmica ao escrever um artigo ao The New Yorker sobre o nazismo. Não cabe aqui entrar em tantos detalhes sobre o enredo e a importância do que o filme tratava. O fato é que a atriz não precisou se apoiar tanto em maquiagem e figurino para a filósofa aparecer ao expectador. Mas eu tive quase uma epifania com a atuação dela. Eu poderia jurar, por um segundo, que ela era Hannah Arendt. A forma com que a atriz fez o discurso argumentando as suas ideias tão duramente criticadas na época soou heroico, febril, intenso e verdadeiro.

Outro ator que convence escandalosamente por sua atuação é Ben Kingsley, interpretando o cineasta George Méliès, no filme A Invenção de Hugo Cabret. Parece até insano dizer isso, mas é quase possível dizer que ele é o Méliès, que toda a história do filme realmente existiu. A atuação dele é o ponto de convergência para a interpretação de todos os outros atores do elenco e, principalmente, a capacidade do filme em surpreender. Acreditamos no drama do personagem porque a atuação de Kingsley é elegante. Isso porque pouco se sabe do próprio Méliès, portanto ele precisou dar a sua própria forma ao cineasta.

Não podemos nunca esquecer, também, da performance que rendeu um Oscar à atriz Marion Cotillard por Edith Piaf. É uma das maquiagens mais impressionantes e reais que eu já vi no cinema. A atriz também adotou os mesmos trejeitos da cantora no palco, a postura curvada, resultado de um reumatismo. O processo de maquiagem durava 4 horas, no qual o maior trabalho era conseguir apagar as feições de Cotillard e aplicar as de Piaf, como a sobrancelha desenhada, a testa maior que a da atriz, os lábios desenhados pelo batom vinho, como na época, e a peruca. Além disso, havia a dificuldade na expressão corporal da cantora – afinal, ela sentia muita dor a ponto de usar morfina constantemente – e do envelhecimento durante o filme. Quando vi o rosto da atriz, achei impossível encontrar a Piaf nele. E sua atuação foi extremamente sublime e realista.

Sabemos que, no caso da atriz Meryl Streep, devido ao seu inegável talento, muitos brincam que ela poderia até mesmo assumir o papel do Batman. E ela o faria muito bem. Em relação à Dama de Ferro, a primeira polêmica foi com a escolha de uma atriz americana para o papel. Como se Meryl Streep não soubesse reproduzir o sotaque britânico. A atriz conseguiu a façanha de transformar a figura de Margaret Thatcher – considerada “dama de ferro” por sua frieza – em uma pessoa humana. Isolada, recebendo críticas do mundo, envelhecendo: todas essas fases foram mostradas no filme. Meryl reproduziu o tom de voz agudo, os gestos, e a maquiagem a fez idêntica à Margaret. A postura da política pode ser questionável, e até mesmo a decisão por mostrar uma versão mais neutra dela no cinema, também. Mas a verdade é que o filme só ganha vida com a atuação de Meryl Streep, que é excelente. Com isso, a única certeza que tínhamos em 2011, durante a premiação do Oscar, é que ela levaria a estatueta.
Em suma, o papel do ator é conseguir representar as diversas facetas de seu personagem. Tomá-lo como ficção, mas preocupando-se em expor a humanidade presente nele. Quando os atores resolvem interpretar personagens tão multifacetados – porque são reais – eles podem muito bem ser críticos quanto à abordagem que será dada. Contudo, ao incorporar as suas características, os atores devem ser os seus personagens, no sentido de que não irão julgá-los exteriormente. É a partir desse trabalho interno, de imersão à vida do outro, que o ator consegue visualizar com certa clareza as nuances de seu personagem. Apresentar a hesitação, a raiva, o egoísmo, a fraqueza e o talento que fizeram dessas pessoas uma referência cultural.
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