Coluna semanal no Fashionatto
A biblioteca Camille era um castelo de histórias em promessa. Pelos corredores dela, jovens desesperados digitando seus trabalhos, procuravam livros para trabalhos finais na faculdade, senhores aposentados liam cotidianamente mais um clássico deixado para trás. Ela, Camila, ia pela curiosidade de uma menina de 13 anos que ainda estava começando a descobrir o que significava segurar um exemplar encadernado nas mãos. A avó da menina costuma ir nessa biblioteca com a mesma idade e o fato de Camila ter um nome próximo à Camille da biblioteca foi culpa de sua vó.
Ela gostava de ficar imaginando quem fora Camille e quem ela era, Camila, nesse exato momento, se havia algo em comum entre elas e quem ela poderia ser. Ninguém nunca pôde explicar a ela por que esse nome da biblioteca em sua pequena cidade. Mas encantava o mistério. Havia algo naquela biblioteca que exalava esse mistério.
Camila gostava de imaginar como seria entrar nas histórias dos livros que ela lia. Resolver um caso junto a Sherlock Holmes e John Watson. Ou conhecer o País das Maravilhas. Mas não seria muito agradável estar no lugar de Harry Potter e ter que enfrentar Voldemort todo ano ou sair por aí procurando por horcruxes. Ou ver das páginas dos livros grandes tentáculos puxando-a para um enredo de Lovecraft. Ela conseguia fazer tudo isso só por aqueles pontinhos pequenos que se tornaram palavras, contornadas por um preto ostensivo e plácido nas tantas páginas que gostava.
Passou a tarde envolvida nesses pensamentos e enquanto lia mais um exemplar que pegara na biblioteca. O cheiro do mogno da mesa de madeira, a luminária que iluminava as páginas e agora cansavam os olhos da menina, tudo era um cenário perfeito para sua leitura. E assim ela se esforçava por horas a fio a ler, com a mesma coragem das personagens que gostava. Foi se sentindo sonolenta, e mais sonolenta, em um torpor no qual as palavras se embaralhavam, em que parágrafo estou? Mas eu já não li isso?
O livro estranho que havia encontrado na estante tinha veias roxas por debaixo da capa aveludada, parecia envelhecido, silencioso, mofado e molhado. Estava seco, claro, mas Camila tinha a sensação de que o livro parecia levar a praias cinzentas e mares violentos. Ela abriu o livro e as palavras que se embaralhavam diziam “a biblioteca é um castelo de promessas. Você está em uma das mais raras. Ela guarda em si um poder que ninguém, de rei a presidente, poderia sequer imaginar. Venha, desafie-nos”. Camila leu aquelas frases e…desafiar como? Ela virou a outra página e havia um belo desenho feito em traços negros e tons azuis preenchendo ondas. Camila sentiu a cadeira tremer, as veias da capa se romperem, seus olhos foram tomados pela escuridão.
Ondas abraçavam o seu corpo, uma água gelada sacudia-a bruscamente. Demorou apenas um segundo para ver que estava no desenho das águas. Eram as mesmas cores, só que bem mais reais! E geladas. Livros passeavam pelas ondas, Camila não conseguia pegar nenhum. Uma voz ressoou aos seus ouvidos, preenchendo aquele mar de livros.
-A curiosidade pode levá-la a todo canto, garota.
-Quem está falando?
-Não importa quem. Importa que você não é todo mundo. Não é todo mundo que pega esse livro caindo aos pedaços. Já pensou se ele libertasse uma gripe do século passado, o perigo que seria? E está aqui há muito tempo. Ninguém ousa pegar esse livro. Mas eu me pergunto: por que ele pegou você?
-Como…? Fui eu que peguei o livro da estante, eu lembro disso!
-Ah, é? Bom, parece que ele te pegou de alguma forma – as ondas circundavam o espaço a sua volta, como se falassem e apontassem para si mesmas.
“É, acho que fui alugada mesmo”, pensou a menina.
-Como eu saio daqui? – perguntou tentando controlar o nervosismo.
-Você pode até sair dessas águas, mas nunca mais sua realidade será igual. Vão ter dias em que as cinzas vão preencher as nuvens e a melancolia corroer seus dias num azul igual ao dessas águas. Por isso, que fique claro: quando isso acontecer, nos seus 13 ou nos seus 80 anos, lembre-se dessas águas. Aqui você pode encontrar mais do que você pensa desejar.
-Você diz…só nesse livro?
-Digamos que esse livro aqui é mais literal – risinhos vindos das ondas ecoaram pelo mar. Parece que elas acharam ter feito alguma piada com literatura e literal. Claro.
-Tá, eu entendi. Mas tudo isso pode acontecer de novo?
-Esse livro existe para quem vem a essa biblioteca e está além da própria vida. Você herdou o nome dela por sua vó, que conhecia bem essas páginas. Mas ah, não, você não tem nada a ver com Camille. Seria clichê, não é? Uma menininha de 2014 como reencarnação de uma garota dos anos 20.
Riam novamente. Não importava se fosse clichê, Camila só queria saber quem ela era naquele exato momento, as risadas começavam a se tornar irritantes e obscuras.
-Então, se eu abrir essas páginas mais de uma vez, eu posso estar num lugar novo?
-Aí que está, você pode, sim. Mas um conselho que nunca pode ser esquecido: adolescentes costumam ter a ideia de que nada os atinge – sussurram as ondas – e aqui tudo pode acontecer. Tome cuidado com o que deseja ser nessas páginas.
-E isso só aqui?
-Claro que não, você não pode sair pelo mundo fazendo só o que quer. Mas entendi sua pergunta. Todos os livros do mundo inteiro foram cultivados com a magia dessas páginas. Mas eles fazem algo que pode parecer mais mágico ainda: em vez de te levar literalmente para qualquer cenário, eles os fazem somente brincando com a sua imaginação. Parece inocente, mas não é. No momento seguinte, você nem se dá conta de que está no seu mundo. E eles fazem isso só por palavras. Escritores podem ser persuasivos e traiçoeiros quando querem.
Camila gostava dessa ousadia dos escritores.
-Tudo isso pode acontecer novamente com qualquer livro – murmurou a si mesma – Mas eu já sabia disso. Eu leio bastante, sabe?
-Ah, querida, não é isso. Aos 13 anos você está começando. Nosso recado é para que você não se esqueça das páginas que encontrou quando pequena ou das páginas que ainda pode encontrar. Talvez você só possa sobreviver no seu mundo se apoiando nesse aqui feito de papel. A imaginação pode salvar seus olhos com a lucidez necessária para entender o que, de fato, você vê quase na ponta do seu nariz, todo dia.
As vozes das ondas foram diminuindo o seu volume e seu entusiasmo. Camila parecia se distanciar delas, mas as últimas frases continuavam como um feixe de luz guiando-a. Aos poucos essa luz foi se tornando mais tímida e a menina notou que elas vinham das palavras à sua frente no livro de capa com veias roxas. A garota acordou na biblioteca. O livro disposto à sua frente parecia comunicar silenciosamente que ela, Camila, era agora mais uma entre os outros seres chamados leitores no castelo de promessas, em que livros de mundos infinitos dormiam aguardando pelos seus olhos ávidos e a curiosidade que a guiaria pelas páginas feitas de ondas azuladas.
Escrevi esse conto enquanto ouvia a soundtrack de Harry Potter e a Pedra Filosofal, vem experimentar também aqui. E as tirinhas são de Macanudo, de Liniers.