Coluna semanal no Fashionatto
O furor alimentava a calçada cinza, apinhada de botas, casacos e olhares curiosos. Na pequena cidade, a obra que durava alguns meses, isolada por tapumes, se revelou como uma loja de departamento de quatro andares. As pessoas sussurravam olhando para cima. As portas se abriram e a curiosidade alimentava as pessoas por entre os corredores, os manequins sentados em poses elegantes, portando uma combinação de jaqueta de couro, meia calça, bota, short e lenço, davam as boas-vindas aos compradores.
Os sorrisinhos, a postura de comprador buscando a melhor peça passeava junto aos desconhecidos. O desejo de compra, a sedução da mercadoria sussurrava eloquente, as placas de promoção sorriam maldosamente, tentando conquistar o olhar mais próximo. Les Magasins da virada do século XIX se preservava nesses espaços brilhantes, as galerias se converteram em corredores de uma loja só. Havia uma expectativa tácita de que todos precisavam sair de lá com alguma coisa da tal loja da esquina. A música pop tocando na loja construía o cenário adequado para se comprar o que havia à frente. Como se o tempo tivesse cessado seu movimento e o mundo existisse no ato de investigar as peças nos cabides.
Não quero mais estar aqui, as araras começam a sufocar a jovem que observava as sacolas, as placas, os tecidos se amontoando na loja. O grande ato começa. A onda de pés, peças, pares de meias, pescavam as pessoas quase devorando o grupo. O sorriso sumira, as araras começavam a ranger loucamente, tomando o pouco ar entre a euforia e o desejo dos consumidores em impressionar o mundo lá fora. Os manequins ganham vida, agora no ímpeto de envolver os corpos quentes com seu material de plástico envernizado, a forma perfeita posta em espera pela peça perfeita.
O desejo era de massacrar, tornar o público em meros reféns. Um mundo de simulacros, com as luzes artificiais, as peças artificiais, os preços enganadores, tudo consumia o pouco espaço que havia de escolha. A loja comportava nos seus andares a promessa de bons preços, mas os passos desesperados entre uma arara e outra, buscando qualquer peça que se mostrasse consumível, isso destruía o olhar, ele se detinha entre a etiqueta e a peça, repetidamente. O indivíduo que estava lá fora se diluía aqui dentro.
Agora, a loja aglutinava os compradores num mar de casaquinhos e botas da estação. O mundo lá fora nem notava o movimento interior, o desespero, um sorriso nervoso duvidando diante da reviravolta da loja. Com a expectativa de se alimentar depois de semanas em obras, sendo cultivada, a loja agora estava sedenta pelo que deveria percorrer suas veias: a mercadoria. Queria aqueles sonhos ingênuos, expectativas, mãos esperançosas passeando pelo tecido, queria consumo. Agora, agora, em cada pedacinho do piso branco, a loja sentia pulsar a sua vida na epiderme. Uma vida de passos que fingiam estar só dando uma olhadinha nas peças, para ver se algo valia a pena, compravam para satisfazer o olhar próximo, o mesmo olhar que comprava pelo olhar mais próximo. E assim o consumo prosseguia em cadeia.
A primeira refeição matutina da loja havia sido feita. Nunca estaria satisfeita. Ela lambeu os beiços, um casaquinho de lã caiu em um canto, o público saía com suas sacolas orgulhosas. O segredo da loja só era revelado nos poucos segundos em que o público duvidava das promessas feitas por ela. Mas não passavam de segundos. A loja voltava a seduzir. A nova fila do lado de fora faria a loja pulsar novamente. E suas veias iriam inchar com o consumismo.
A imagem de capa é dessa campanha aqui “faça amor, não às lojas”, numa tradução livre, ironizando a necessidade de se provar o amor no dia dos namorados pelo presente comprado e o mercado aquecido nessa época.
O meu conto também foi inspirado nas críticas de Walter Benjamin e do poeta Charles Baudelaire ao novo tipo de flâneur que surgia em Paris do XIX, o basbaque, aquele que entra na loja com o desejo de apenas consumir, se tornando um refém da mercadoria, além da multidão que se torna massa.