Coluna semanal no Fashionatto
O Salon estava lotado naquele domingo. Vestidos feitos dos melhores tecidos, ou os melhores tecidos que as mulheres poderiam comprar dentro de suas possibilidades para seus vestidos, se encontravam farfalhando entre os passos demorados em mais uma edição do Salon, agora fervilhado de pessoas e olhares curiosos, críticos mal-humorados, artistas receosos querendo ver seus trabalhos nas paredes. Mais um Salon estava aberto, no ano de 1868. A cada ano as paredes eram alimentadas de obras e mais obras acadêmicas de artistas que iam construindo os seus nomes pela exposição, como Delacroix, Courbet, e a abertura do Salon era o evento que emanava a curiosidade e o gosto de comentar aos burburinhos as obras submetidas à Academia.
“Mais uma vez esse tema?”, “esse aí não sabe pintar”, “ele insiste em fazer mulheres sem ao menos saber pintar uma pele humana!”, “que vestido horrível, eu nunca o usaria, querido” eram algumas das possíveis frases que surgiam por entre a multidão. Os quadros, um acima do outro na parede, formavam um ambiente claustrofóbico de críticas, de desprezo, às vezes de encanto por mais uma execução excepcional naquele ano que tomavam os jornais exaltados diante do feito. Aquele espaço era muito pouco para a proposta e a vontade própria que emanava dos inúmeros quadros submetidos, deixados sozinhos para a mão em riste e a frase dura que poderia condená-los a um suposto fracasso em um ano.
Costurando as críticas proferidas aos cantos ou abertamente, desviando dos vestidos irritantes que insistiam em prender-se ao chão e ao caminho livre, estava um rapaz de terno simples, um tanto desgastado, com as mãos nos bolsos, olhando a sua volta com um meio sorriso divertido nos lábios. Todo ano ele insistia em visitar o Salon. Gostava de ver os tipos humanos, como muitos vestiam, juntamente às suas roupas feitas para impressionar, as melhores frases que tinham em mente para demonstrar que possuíam conhecimento sobre arte, sobre composição. Sem dúvida era um ótimo espaço para que a arte pudesse ser vista pelo público, e não morar apenas em um ateliê ou nas rodas intelectuais. Mas o jovem se surpreendia com a recusa categórica com que público e críticos viam as obras.
O jovem imaginava-os num julgamento, no qual cada integrante desse público admirador das normas que a Academia adorava presenteá-los com temas já estabelecidos, subia ao púlpito e defendia a sua tese em cinco linhas, concluindo com o som do martelo condenando o quadro exposto. Em 1865, provavelmente a obra mais julgada, que deve ter feito as massas xingarem, subirem raivosamente nesse púlpito que o jovem imaginava, dizendo que a obra era um atentado à moral parisiense, à nudez pura de Vênus, quem sabe até um ataque ao objetivo com que se fez um mero pincel – para criar o Belo!, deve ter sido Olympia, de Manet. Chamada de mulher-gorila, corpo em putrefação disposto na cama (em um lençol que indicava a sua profissão de cortesã), Olympia foi atacada e esse ataque não foi esquecido pela posteridade.

Diante do quadro de Manet: “Por que diabos essa mulher robusta e negra numa camisa se chama Olympia?” “Mas meu amigo, talvez não seja a gata preta que se chama Olympia?”
Agora, em 1868, esse jovem rapaz achava curioso o silêncio daquele público fervoroso pela crítica, diante de Jeune Dame, também de Manet. Ele parava diante da obra, sozinho, via os olhares fugidios, as poucas críticas dos outros que, provavelmente, divertiram-se criticando Olympia. Não poderia ser apenas desinteresse. O jovem vira que, para aquele público, a jovem moça de camisola ao lado de um papagaio parecia não dizer nada. Quando ele se postava diante do quadro, o jovem que pouco sabia de arte, poderia afirmar que a moça ganhava vida, em um olhar hesitante para ele, e que a posição demarcada para o papagaio possuía um motivo a ser desvendado. Ele e a jovem se olhavam como se houvesse uma vitrine, e ela não parecia estar distante dele como as Vênus de peles alvas estavam no restante do salão.
O jovem ainda voltaria algumas vezes para ver Jeune Dame no Salon e para flanar por entre as obras à espera do desvelamento de alguns dos mistérios que o assombrava. E ainda reencontraria um artista simples, que se divertia esboçando croquis dos tipos humanos entre o público, olhando para Jeune Dame com a mesma curiosidade que ele tivera e a qual durava dias. Naquele momento, o mesmo jovem que ia ao Salon todos os anos, sentia que o espaço claustrofóbico parecia se esvaziar somente para o pequeno instante em que uma obra saía da delimitação da sua moldura e ganhava quase um brilho, que destacava o mistério que era a sua essência, pedindo para ser vista e voltando a se ocultar.
E ver o encanto de outro indivíduo pela mesma obra que seus olhos não queriam deixar de contemplar formava uma ligação invisível entre esse público antes virtual e a obra. Era por esse olhar que a jovem dama no quadro se aproximava, hesitava olhando nos olhos do seu observador. Parecia ser por esse olhar que todos os quadros se alimentavam, clamando por uma participação genuína do outro na recriação da obra de arte.
Resolvi transformar a minha pesquisa sobre Olympia e Jeune Dame em um conto. Lendo as críticas da época às obras, fiquei imaginando como seria estar entre o público do Salon observando as obras que, hoje, encontram um espaço aberto para o seu estudo. Por isso a existência do artista e do jovem curioso sobre arte (um flâneur, andarilho), no conto: para demarcar os possíveis tipos humanos que poderiam existir na multidão que enchia o Salon.
*imagens: croquis feitos por Honoré Daumier, nas suas visitas ao Salon de 1868.