Matéria publicada no site Zona Crítica
COM SPOILERS
No tempo humano posso até estar com um atraso de um mês, mas quando se trata de tempo e Doctor Who, posso dizer que estou relativamente atrasada para escrever essa resenha sobre o final da 8ª temporada. Então ela finalmente chegou. Se o 12th Doctor demorou duas semanas para trazer um café para a Clara, a resenha tem lá um atraso aceitável.
No dia 8 de novembro pudemos conferir a season finale da série britânica da BBC Doctor Who. Com uma temporada de 12 episódios, foi possível constatar, então, o arco proposto por Moffat lá em Deep Breath sendo, agora, concluído. Enquanto o Natal não chega com o especial da série, é válido fazer algumas considerações do que ocorreu até então e as expectativas deixadas para a próxima temporada. Para você não se sentir perdido nesta linha temporal, eu fiz uma matéria sobre a primeira metade da temporada, do episódio Deep Breath até o Kill the moon (aqui).
Se houve uma queda de qualidade em relação ao roteiro nos episódios The Caretaker e uma dúvida quanto à composição da Clara enquanto personagem em Kill the moon, em Mummy on the Orient Express, o oitavo episódio, pudemos conferir uma recuperação na amizade entre o Doctor e a Clara. Este seria o último destino para a companion que havia pedido para deixar de viajar com o Doctor. Além da ótima surpresa de ver Foxes cantando uma versão de Don’t stop me now, do Queen, com todo o charme do jazz (aqui), o episódio apresentou a perspicácia do Doctor em descobrir a origem da misteriosa múmia que perambulava pelo Expresso do Oriente sem ser visto pelos tripulantes. Uma múmia que, se vista por alguém, declarava que a pessoa estaria morta nos próximos segundos. Aqui o roteiro foi bem planejado, com algumas surpresas no enredo , fotografia e figurino bem equilibrados.
Mummy on the Orient Express foi seguido pelo excelente Flatline. Após as incongruências que me incomodaram quanto às alterações bruscas de roteiro no comportamento da Clara,em Flatline é possível vê-la em sua melhor forma (em Listen e Deep Breath ela está ótima também). No episódio, a TARDIS encolhe, e além de vermos uma versão adorável, como se fosse aquele toy que você comprou em um site gringo porque não resiste à cabine azul de polícia, temos o Doctor dentro da TARDIS encolhida. Como ele não consegue sair, precisa contar com a ajuda da Clara que, assim, assume o papel de Doctor para resolver essa falha e descobrir o que está ocorrendo em Bristol. Pessoas estão sumindo e, para homenageá-las, uma equipe de grafiteiros cria um memorial em que há as silhuetas daqueles que sumiram. Clara então, descobre, que aquele não é um memorial qualquer e que pode levá-los à recuperação daqueles que sumiram.
Flatline foi uma espécie de teste para ver se funcionaria ter uma versão feminina do Doctor. O episódio, escrito por Jamie Mathieson, traz um frescor à temporada por inserir elementos clássicos do enredo sci-fi, além das referências fantásticas ao mundo pop como A Família Addams. O episódio não perde o ritmo e nem o humor em nenhum momento e termina de modo misterioso, deixando uma abertura para o trabalho de Moffat na season finale.

O Doctor saindo da TARDIS encolhida é o mesmo que tentar sair do ônibus todo dia.
In the Forest of the Night foi o décimo episódio e trouxe algumas semelhanças com contos de fadas clássicos e uma atmosfera semelhante às Crônicas de Nárnia. O episódio não colabora para o enredo geral da temporada, mas ele aparece como uma pausa aceitável antes de entrar nos dois episódios que constituem a season finale. Maebh bate na porta da TARDIS pedindo ajuda ao Doctor ao mesmo tempo em que Londres perde sua aparência cinzenta e é coberta por árvores. Em seguida descobrimos que o mundo inteiro está entre folhas. É função do Doctor, então, compreender qual é a ligação que há entre esse fenômeno e as vozes que a menina Maebh escuta. A relação entre a Clara e Danny Pink, o professor de matemática com quem ela trabalha, se estreita aqui, finalmente se mostrando mais realista e profunda. E não a comédia romântica esquisita do episódio The Caretaker.
In the Forest of the Night também dá espaço a um bom elenco de crianças que proporcionam ao episódio a delicadeza de um filme infantil. É verdade que o que foi qualidade do episódio inteiro acabou gerando um final bizarro, em que a menina Annabell, que estava sumida, surge dramaticamente de uma moita, em um final que gerou memes pela internet e o inevitável riso diante da cena mal feita. Também vale ressaltar que, com esse episódio, veio novamente a observação de que falta, na 8ª temporada, mostrar a grandiosidade do caos no planeta Terra que já é conhecida na série. No caso dos episódios Kill the Moon, In the Forest of the Night houve a chance de proporcionar essa experiência e isso não ocorreu.
Não é necessário transformar todo episódio no fim do mundo, como víamos na era do Russell T. Davies. De fato, funcionava em vários episódios e a verdade é que, às vezes, temos a nostalgia dos tempos do 10th. Mas Steven Moffat tem uma proposta diferente e igualmente válida à série no trabalho das temporadas anteriores, com uma linha temporal intrincada que amplia as chances de ver o fantástico de maneira nova e singular. O que aconteceu na 8ª temporada, porém, foi que os momentos em que era possível amplificar a dimensão desse caos na Terra, vimos o planeta esvaziado. O caos não foi representado. Nós o vemos apenas da lua, distante, as pessoas que votaram pela destruição da criatura que surgiu da lua pareciam abstratas e seus votos nem foram considerados, vale lembrar. In the Forest of the night, vemos apenas a cidade se recuperando. Mas é uma cidade vazia. Faltou, portanto, expor as pessoas que pertencem a esse planeta de modo que prossiga com o grande acerto da série, que é o contato humano e a admiração profunda que o Doctor sempre teve em relação ao planeta Terra.
Foi com essa expectativa que assisti aos dois episódios da season finale, Dark Water e Death in Heaven. O primeiro se inicia de modo surpreendente e desesperador, um grande acerto que conduz o enredo do episódio. Nele, finalmente vemos a relação da Clara e Danny ascender a um patamar significativo, e as pistas deixadas em episódios anteriores ganham forma. A tão esperada aparição da personagem Missy é o que agrada o espectador na finale. A crueldade com que ela mata, a sua identidade revelada no final do episódio, a versão que ela assume como uma Mary Poppins evil, tudo funciona em Missy. Moffat constituiu uma vilã cativante, tão perspicaz quanto o Doctor, irônica e com um humor afiado, que esperamos ver em futuros episódios.
Dark Water permite pensar sobre a vida após a morte de maneira criativa, envolvendo uma dimensão temporal, em que existe uma cidade para os mortos. E são esses mortos, adormecidos, que Missy pretende trazer novamente à vida. Da terra eles surgirão como Cybermen. Sim, eles estão de volta, como o exército de Missy. E é com essa premissa que seguimos para o último episódio, Death in Heaven. Novamente, a grandiosidade que se esperava ao presenciar a possibilidade de Missy conseguir um planeta povoado por Cybermen, de mortos voltarem agora na forma metálica de um ciborgue, se perde, em um roteiro que não parece com uma finale. A série teve acertos impecáveis em alguns episódios da temporada. A surpresa que temos ao saber que a Missy é uma regeneração do Master, Time Lord com quem o Doctor viveu em Gallifrey e inimigo recorrente na série clássica e que apareceu na 4ª temporada da nova série, se torna a promessa de uma grande história. Contudo, ela não é trabalhada de modo que a finale intensifique a rivalidade entre o Master e o Doctor e a urgência de salvar a Terra desta ameaça. Novamente, o planeta parece esvaziado e um arco que poderia ter rendido um grande enredo final perde sua dimensão diante de tantas histórias independentes nos episódios anteriores. O que poderia ser excelente soa apenas como bom e apropriado, sem um clímax na finale.
Isso não quer dizer, porém, que a série tenha sua qualidade ameaçada. Fica evidente que o Moffat está iniciando seu trabalho na composição do Doctor agora com Peter Capaldi, que tem um enorme potencial de tornar o 12th em uma versão muito profunda desse Time Lord que já viu o início e o fim dos tempos. O peso deste personagem é bem delineado em Listen, principalmente, e a 8ª temporada deixa no ar a expectativa de se ver muito mais do 12th como esse homem feito por um passado infinito e cheio de nuances.
Clara Oswald, a companion
Vale abrir um espaço aqui para falar um pouco sobre a composição da Clara como companion do Doctor. A liderança dela fica bem demarcada em Flatline e é conduzida com maestria pelo roteirista, e aqui novamente se insiste na comparação entre ela e o Doctor, que o Moffat, enquanto showrunner e roteirista da série, propõe em seus episódios.
O que ocorre é que o showrunner optou por construir essa comparação entre a companion e o Time Lord de modo que considerássemos que houve uma mudança no comportamento de Clara quando ela conheceu a nova faceta do Doctor. Se na era do 11th, com Matt Smith, Clara tinha ainda a doçura e a leveza que constituía a atmosfera deixada por Amy e Rory, da 5ª a 7ª temporada, na 8ª a impossible girl que a Clara foi dá lugar a uma personagem mais forte e mais convicta de sua importância.
Essa sua faceta surge, talvez, até mesmo como uma defesa diante do novo comportamento do Doctor, um sujeito já demarcado pelas guerras e mais sombrio e esquivo. É aceitável esse novo caminho que ela assume, uma mulher que ganha mais espaço no enredo, mais do que a Amy teve enquanto personagem que participa ativamente das cenas, na fase anterior. Mas há um problema que permeia a 8ª temporada: enquanto a Amy Pond – uma personagem que podia ter sido melhor trabalhada enquanto companion, mas que funciona porque é bem interpretada pela Karen Gillan – teve um enredo profundo e com arcos propostos em torno de sua vida e a de Rory, a história da Clara Oswald se mostrou bagunçada e confusa. Ela é a impossible girl e muito mais, uma mistura que poderia render um arco excelente, com uma complexidade bem amarrada.
Sabíamos que, ao adentrar na 8ª temporada, o enredo da Impossible girl como aquela que esteve em toda a linha temporal do Doctor havia ficado para trás. A questão é que esse fato – que deveria ganhar um destaque maior no enredo para aprofundar o psicológico da personagem – fica abandonado, esquecido. A Clara, em cada episódio, vinha com uma formulação distinta. E isso confunde, dificulta a identificação do espectador com ela. Há acertos na tentativa de torná-la mais ativa e importante, já que é preferível ver uma companion que nos represente enquanto personagem que pode viajar com o Doctor, e principalmente, que seja relevante na própria vida dele, que tenha seus próprios dilemas postos em contraste com a história incomensurável do universo.
Agora, para o especial de Natal, veremos Doctor e Clara conhecendo o Papai Noel, personagem que até, então, eu imaginava ser fictício entre os humanos da série. Parece que ele é tão invisível quanto o Doctor em suas ações anuais para trazer o Natal – ou salvar a Terra – conforme a Terra requisita. E, por enquanto, Moffat confirmou que Peter Capaldi permanece na 9ª temporada, mas ainda não sabemos se Jenna Coleman, a Clara Oswald, sai agora no especial de Natal ou se permanece pelo menos até metade da próxima temporada. Espero que ela fique e seu enredo seja amarrado de forma inteligente, para encerrar bem o sue longo ciclo. O que sabemos é que o ano de 2015 guarda infinitas viagens com o Doctor no interior da TARDIS.