Escrevi este poema inspirada pelo trabalho de Ferreira Gullar (1930-2016), neste dia melancólico pela morte do poeta.
O gosto da tangerina de hoje é o amargo da morte.
Ela desfalece em tristeza,
Como fruta de cheiro longínquo
Abandonado pelo poema numa sala de estar.
Mas ela sobrevive incólume na palavra escrita.
As peras se entristecem
E a morte delas não cessa.
A morte nunca cessa.
Mas o galo continua a cantar,
Pois sem ele,
Poesia é só uma palavra elegante.
Sem o canto, poesia são só seis palavras.
Poesia tem que ser esse arrancar de pele,
Do sangue que sai nas mãos,
E da dor que é uma palavra restar
Quando um poeta morre
Nas veias do papel.
Ele não morre de verdade, não.
Ele está em cada canto nas curvas das palavras,
No vazio do acrescentar uma letra em outra,
E onde a sua morte invade o sol de um domingo.
O poeta reside na carne da palavra,
Que eu, você, almas desesperadas
Precisam por pra fora
Quando escrevem.
Desculpa se eu não escrevi,
Se eu me calei no tédio anestesiante da rotina,
Se eu destruí este único compromisso que tenho comigo.
(Compromisso maior do que documentos exigidos
pela burocracia que me força a cumpri-lo).
Mas a poesia adormece comigo,
E o lençol que a aquece é feito de carne, de sangue,
De choro e de tardes bonitas.
Toda essa mistura humana
Que está em todos nós,
Quando a gente esquece que o dinheiro tem que dar
Para a lista do mercado.
É a mistura que grita a toda hora.
É o pesado canto interno que carrego,
De palavra e carne firme e viva.
créditos de imagem: Heather McCaw
Tempos duros
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