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A 3a temporada de The Crown e as fissuras na Coroa

Tornar-se o perfil representativo e envelhecer diante dos olhos da nação. A terceira temporada de The Crown se inicia com a Rainha Elizabeth II (Olivia Colman) descobrindo sua nova face imortalizada pelo selo. Misturada a sua imagem, vem a crise na sutileza da dúvida, se os anos como a Coroa foram válidos, o porquê de o cenário do Reino Unido pós-guerra estar caótico, com a desvalorização da libra, os conflitos com as colônias, mudanças de primeiros-ministros, lugares querendo se tornar independentes do domínio britânico. E a família, mergulhada nos dramas oriundos da exposição pública.

A terceira temporada ganha novo elenco e uma abordagem mais madura. Olivia Colman assume o posto de rainha Elizabeth II; Tobias Menzies, o Príncipe PhilipHelena Bonham Carter se torna a Princesa Margaret. A dinâmica da série se aprofunda, pois acompanhamos as consequências do endurecimento dessa instituição na vida da família real e os reflexos sociais.

Olivia Colman é a escolha perfeita para dar continuidade ao trabalho de Claire Foy. Igualmente impecável, a vencedora do Oscar de Melhor Atriz por outra rainha em A Favorita, Olivia Colman dá mais altivez à figura. Ela é mais madura e, ainda assim, a atriz insere as leves vulnerabilidades que os bastidores deixam entrever. As fissuras nessa face da rainha incólume. Ela se distancia cada vez mais dos vínculos familiares, é a rainha para todos. Quando tenta intervir, é na divisão confusa entre o afeto familiar e o dever da estabilidade da Coroa. 

Olivia Colman em The Crown

A atuação de Olivia normalmente é cheia de intensidades emocionais. A atriz consegue em seus trabalhos variar facilmente entre comédia e drama, e com a rainha ela tem um papel mais comedido. A versão de Claire Foy pôde mostrar mais de sua fase vulnerável e inicial, por conta da juventude. Agora, com Olivia Colman, vemos flashes dessa vulnerabilidade. A atriz sabe controlar uma cena como ninguém: o derramar de uma lágrima nos bastidores, o receio de julgarem suas emoções, a dúvida sobre seu papel como rainha, mulher e mãe, tudo é um gesto que Olivia apresenta dando um passo a frente, na medida em que logo recolhe aquelas emoções e as contém no olhar. Pelo bem da Coroa. 

O roteiro busca, nesse caminhar que se desenvolve mais a partir da terceira temporada, explicitar as encenações da Coroa e as complicações futuras. A terceira foca nos demais personagens em torno da rainha. O empenho está em mostrar mais a vida dessas pessoas além das aparências. O Príncipe Charles (Josh O’Connor) e a Princesa Margaret serão as principais figuras nas demonstrações do sofrimento e da rigidez impostos pelos deveres da realeza. 

Dentre os episódios, temos situações políticas e desenvolvimentos de personagens marcantes: “Olding” tem um desfecho interessante sobre pintura e aparências, pois o retrato e a face de alguém esconde outras pessoas, e isso reflete as relações dos bastidores da realeza. “Margaretologia” é um ótimo episódio, cômico pela atuação de Helena Bonham Carter expondo o encanto dos americanos por Margaret. “Bubbikins” tem a sensibilidade de apresentar a mãe de Philip, a Princesa Alice (Jane Lapotaire), e a questão da fé. Chamo atenção para o episódio “Aberfan”a história trágica de um acidente em uma mina no País de Gales que faz uma cidade toda vítima, incluindo uma escola. Temos os sonhos deixados em segundo plano de Elizabeth e Philip nos episódios “Golpe” e “Poeira Lunar”, entre o amor pelos cavalos e o desejo de voar e ver a lua, bela alusão ao céu e à terra. Assim como “Cri de Coeur” é o enfrentamento de Margaret aos sonhos destroçados em torno do casamento. 

Confrontos políticos

É interessante observar as linhas que levam a consequências políticas entre as temporadas. Todas convergem para conflitos com o povo das regiões próximas, os londrinos e, principalmente, com as colônias que desejam independência.

Olivia Colman e Tobias Menzies em The Crown

O acidente em Aberfan tem o seu reflexo no episódio “Tywysong Cymru”, ambos no País de Gales, mostrando as discordâncias da região com o domínio da realeza e o abandono do povo. Em toda a ênfase política da série, vemos o confronto do coletivo em mobilizações de movimento militante, de pessoas revoltadas com desemprego ou uma hegemonia que é legado do imperialismo britânico, em que pessoas veem a identidade do próprio país determinada pela Coroa, que na realidade é o verdadeiro estrangeiro às terras que domina, e não o oposto. Embora The Crown tenha certa cautela no retrato dos primeiros-ministros, ela se desvencilha um pouco do perigo de ser uma série convencional demais quando apresenta a reação do povo. 

O desconforto chega no palácio, e o corpo sólido da série é exatamente esse contraste, de termos alguns vislumbres de fatos históricos que pouco sabemos. The Crown tem esse especial apelo, trazer para mais perto décadas de um reinado com enorme complexidade, no epicentro das alterações do mundo moderno. 

Princesa Alice e príncipe Philip

Em “Bubikkins”conhecemos a figura fascinante de Alice de Battenberg, a mãe do príncipe Philip. Ela é uma das faces que de alguma forma o filho tenta esconder, pela dolorosa separação da infância e as lembranças do abandono de sua terra natal. O relato dessa senhora que foi freira, internada por histeria, tratada por Sigmund Freud, resgatou judeus de nazistas, é um dos pontos altos da série e o tipo de história que dá vontade de ler e saber mais depois de assistir.

As consequências do contato entre mãe e filho ocorrem depois no episódio “Poeira lunar”, quando Philip relembra que a mãe lhe disse para buscar uma fé, um sustento. De início, ele se encanta com a promessa da conquista lunar pelos astronautas que pisam na Lua. Em visita deles ao Palácio de Buckingham, Philip prepara mil questões para perguntar, querendo imaginar o que seria ver a Terra do alto, o contato com o sentimento de imortalidade que ele sente ao voar. Mas percebe que idealiza aqueles homens que foram para a lua, no fim podemos fazer coisas extraordinárias, mas somos humanos. 

Na sequência, quando se reúne ao grupo de padres da St. George’s House, Philip nota que vivencia uma crise, um desejo de entender as questões que tem sobre a vida e sua função no mundo. Tobias Menzies é brilhante nessa construção. Justamente com aquelas figuras dos padres, às quais ele têm resistência, Philip encontra um eco das suas dúvidas filosóficas, um repensar sobre a fé. 

Os dilemas do Príncipe Charles

Assim como o pai, Charles passa por provações. Nos episódios “Na corda bamba” e “Imbróglio”, temos o desenrolar da história dele. Proibido de se casar com Camilla Shand (Emerald Fennell), aos poucos ele percebe as redes de manipulação da família – uma repetição do caso da princesa Margaret – para assegurar linhagem e boa reputação. 

A noção de teatro que aparece nas temporadas anteriores como a encenação falsa da realeza, pela opinião do príncipe Philipsobre os uniformes, vai aparecer também na terceira temporada, como o espaço onde seu filho Charles se liberta criticando a própria Coroa.Com toda certeza, essas nuances revelam como William Shakespeare é uma inspiração para a série. O autor lançou luz para instantes históricos, figuras de reis e rainhas que sucumbiram à morte, à violência e à loucura. Reinos se ergueram e, se olhar bem de perto como Shakespeare propõe, veremos as fissuras, os entraves e as questões éticas postas em dúvida. Em determinado momento no sexto episódio, Charles interpreta os versos de Ricardo II, ato 3, cena 2:

“Pois dentro da Coroa

Que as têmperas mortais de um Rei circunda

Tem sua Corte a Morte, e lá está o Bobo

Zombando de seu Estado, e rindo-lhe da pompa,

Permitindo um suspiro, ou uma cena breve,

Que monarquize, o temam, mate com olhares,

Embebendo-o de estultas presunções,

Como se a carne que muralha a vida

Nos fosse inexpugnável bronze: oh, ilusão!

Quando ela vem por fim, e com um alfinete

Perfura os muros do Castelo… e adeus Rei.

Cobri-vos. Não troceis da carne e osso,

Com reverências solenes. Deitai fora

Respeito, as tradições, as etiquetas,

Porque me haveis julgado o que não sou:

Vivo de pão, qual um de vós. E sinto faltas,

Procuro amigos, sofro dores. Assim sujeito,

Como podeis dizer-me que sou Rei?”

O trecho revela esse penetrar vulnerável da Coroa que pesa na têmpora do rei, pois além das tradições, das etiquetas, o que nosso olhar encontrará é um ser que sofre de luto, dores, procura amigos, sente fome, é humano e falho. E, por isso mesmo, como podemos dizer que são imortais? O que é ser rei, então, se a Coroa forja esse humano? 

Charles sente constantemente que parece ser uma farsa: vive em função da morte e da herança, sem saber quando acontecerá, existindo em um limbo. Tudo em meio aos espetáculos que ele sente não dar conta, que zomba e faz os outros rirem. E a falha, nesse espetáculo, é mais pesada, porque faz desmoronar tudo em torno do Palácio.

Essa cena, junto com a coroação da rainha Elizabeth IIna primeira temporada, é uma das mais belas até agora na série. Pois vemos esse contraste entre a rainha que aceita abrir mão em função da Coroa, as consequências disso na família, e o conflito interno de seu filho em querer fazer parte do mundo, ter voz como os outros, ser um rei que lembra os demais que tem fome e que é um corpo também. Quando a rainha diz ao filho que ninguém quer saber o que ele acha, ninguém quer ouvir sua voz, é um marco dessa rainha que precisou se endurecer e desconta no filho aquilo que lhe dói: ter que abrir mão dos gostos pessoais, dos sonhos de uma vida comum, e aguentar as aparências forjadas pela Coroa.

Joshua O’Connor e Olivia Colman em cena de The Crown

Longe de esquecermos que a família real tem um monte de privilégios em um mundo de pessoas que sofrem violências, estão desempregadas, e precisam sobreviver com uma renda baixíssima. Mas é curioso ver que, ao fim, as pessoas da família real, tornadas nomes históricos ou corpos que se visita nos túmulos da Abadia de Westminster foram, sobretudo, pessoas. Privilégios e circunstâncias fizeram seus nomes. E aí existe esse paradoxo: a Coroa é um artefato de vida própria tão pesada que cria ilusões e massacra coisas comuns; mas os humanos protegidos por essa Coroa também têm uma medida de livre-arbítrio para agir e se responsabilizar sobre algumas decisões que tomam.

Em outro instante que duplica essa encenação, no episódio “Tywysong Cymru” Charles tem o compromisso de fazer um discurso em galês. Numa encenação simbólica inspirada numa lenda bem antiga, ele deve assumir como o Príncipe de Gales que se comunicará na língua daqueles que o recebem. De acordo com a lenda, Eduardo I teria dito ao apresentar seu filho para os galeses, que aqui estava um príncipe que não falava inglês. O desafio de Charles é o de ficar três meses numa universidade local para aprender o idioma e fazer o discurso.

A sua recepção é bem intensa. Ninguém vê com bons olhos a sua presença, e Charles se vê solitário. Em um embate inicial com o professor que lhe dará aulas, aos poucos vemos a dinâmica aluno-professor levá-lo a querer aprender mais sobre as injustiças do local. Lá, ele tira esse invólucro da Coroa e se comunica com os galeses na língua deles, desafiando a própria rainha ao fazer um discurso próprio e mais próximo da realidade. 

A imagem pública da princesa Margaret

A dinâmica dual entre as irmãs se intensifica na temporada, caos já abordado nas primeiras temporadas. Enquanto Elizabeth tenta colocar panos quentes, amenizar os conflitos do matrimônio de Margaret, vemos que há um sutil sentimento de culpa, por Margaretnão estar no primeiro casamento que desejou. Tom é uma figura amada pela família, e Margaret ressalta isso numa cena brilhante de seu aniversário. Como acontece em vários círculos familiares, temos essa mulher abandonada e traída pelo marido, mostrando abertamente que sofre e chegou no seu limite, e na mesa ela só encontra inimigos. A própria família elogiando aquele que a faz sofrer com falas, atos abusivos e humilhações públicas.

Helena Bonham Carter como princesa Margaret

A fuga de Margaret para um romance com um homem mais jovem em praias idílicas é um insuflar de ânimo e leveza para alguém que sofreu tanto tempo. O contraste é bem óbvio nas cenas: somos tirados da escuridão opressora dos quartos carregados por dourado e tapetes, para o mar aberto, o azul absurdo da piscina, a sensualidade livre. 

É com a fala de Margaret que a temporada se encerra. Todos na família podem quebrar, mas a rainha precisa persistir incólume. Com esse peso, a rainha adentra na carruagem sabendo que é quem rege o país, a família, não podendo revelar sua face humana e falha. É função dar continuidade à ilusão dessa Coroa que aperta as têmporas da rainha, sem que seja penetrado por um alfinete os muros do Palácio. Nela, a fissura revela um abismo no qual é irrecuperável aquilo que conquistaram com ritos e símbolos, o toque dourado de Deus em um ritual criado por humanos. 

Referências bibliográficas

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