A respiração pesada dentro do capacete podia ser a pior parte de todo o trajeto entre a superfície do planeta. Era a acompanhante ruidosa de todas as noites que viravam dia onde não era mais a sua casa. Ela ocupava pesadamente o capacete tanto quanto seus pensamentos, que variavam entre as tarefas de montar mais uma sonda e a impressão de que qualquer vida havia acabado na terra que, antes, povoara. A respiração era vida e morte em mesmo discurso.
Por isso cada passo denso que dava nesta superfície era o mesmo que carregar consigo todos os humanos já mortos. O próprio tempo, agora, era outro. Esvaziado, morto, desnudo. O relógio não fazia a menor diferença, e o tempo humano soava longínquo. A Terra vivia sua quarentena mais obscura e, ele, tivera a sorte por possuir os conhecimentos científicos necessários para tal expedição, o sonho de desbravar outro mundo e curar a Terra da mortalha que carrega há séculos, de lugar que ansia pelo progresso cego. Ele era, agora, o guia nesta cegueira.
A angústia de se sentir digno de pisar em outro planeta vinha de vez em quando, em forma de pesadelos. Vinham sempre entoados pela respiração ruidosa. Se um dia Tom voltasse para a Terra, o som que escutara da própria respiração iria acompanhá-lo como mais uma trilha sonora irritante de filmes sci-fi. Era como a criança que já havia assistido o mesmo filme centenas de vezes. Esgotamento profundo era o que ele tinha no sonho, como se o corpo cedesse ao desespero e a respiração tomasse conta de tudo. “Mas ao menos estou respirando”, pensou ele. Isso poderia servir de consolo, mas por vezes, ele só queria que o som cessasse.
Mas houve o dia em que todos morreram na superfície do planeta inóspito. Por uma tempestade intensa de poeira, ele viu amigos desaparecerem na cortina avermelhada, e ficou sozinho. Tentou contato, muitas e muitas vezes. Mas, no fim, assumiu para si o personagem das histórias de ficção científica, o sobrevivente abandonado no espaço.
Na vida real, contudo, isso era mais desesperador. Havia pouca comida, e o pouco que havia gostava de lembrá-lo da decadência que era estar em outro planeta, sem nada de útil a fazer como a NASA, pelo contrário, gostava de glorificar, e imaginando os amigos mortos. Tentou por dia procurá-los, queimou no sol e achou que morreria na poeira por conta da sede. Só havia a respiração para acompanhá-lo. Sempre ela.
Nos dias que retornava para a sua recente casa, encontrava as comidas imprestáveis e o tempo de vida que escorria rapidamente. Irônico para quem queria tanto se livrar do som da respiração. Contava a comida e tentava contato. Mas houve o dia em que ele veio.
– Aqui é Major Tom em mensagem ao Controle do Solo, eu não sei mais o que fazer. Tento enviar relatório e não obtenho nenhuma resposta. Eu estou sozinho em A-457, e a cada instante a comida se esgota, eu estou com…
O medo foi interrompido pelo ruído de uma fala. Desta vez a respiração quase cessou. E depois ganhou impulso, e se intensificou.
-Eu posso ouvir, Major! Por favor, responda, preciso de um relatório sobre a sua situação – houve uma pausa longa – Para que possamos tirá-lo daí.
-Ah, me tirar do espaço não é lá uma tarefa fácil – sorriu ele tristemente, olhando para a sala de controle vazia.
Foram dias tentando contato que eram cortados e, mais uma vez, seguidos pelo silêncio e o desespero. Mas houve um dia, em que a resposta definitiva veio. “Sim, eles sentem muito”, Tom tentou se convencer, mas a raiva e o choro eram descontrolados. Ele comeu por dias com um sabor amargo na boca, e tentava imaginar como seria morrer. A família que ficara na Terra, em meio a toda a fome e sede, repetiria por décadas, entre sussurros, para aqueles que sobraram, a tristeza de ter os restos de um parente em um planeta distante, onde morreu sem ao menos ser visto. Mas Tom sabia que sua família poderia assegurar que ele tentou.
Muito foi pensado naqueles intervalos. Os dedos de Tom tocavam o vidro gelado de onde via a Terra. Não sabia mais distinguir o que era menor ou maior, se sua latinha tecnológica cheia de luzes azuis e vermelhas, na qual estivera abandonado até mesmo pela Morte, ou se a esfera azul no seu horizonte feito de vazio negro e explosões brancas. Lata e Terra eram o mesmo mundo, em uníssono respiravam, dentro do pequeno astronauta.
Neste olhar que ligava as duas realidades, Tom sabia sentir o passado vivo. O perfume da camisola da esposa, os cabelos desgrenhados dos filhos em sua mão, o domingo arrastado de toda semana com cheiro de frango e batatas, os sabres de luz e heróis que adotou nas mãos e na mente quando criança, as noites estendidas em estudo e contas, o amor e vício pela ciência, que vinha misteriosamente da criança que foi, a contagem regressiva e a vontade de vomitar ao entrar no foguete, as mãos trêmulas da equipe, as partidas de poker, e a primeira vez que chorou ao ver a Terra.
O reservatório de souvenirs se enchia e respirava mais alto que a sua própria respiração ruidosa, porque agora chorava. A Terra soava nova a cada lembrança. Sabia não poder voltar. Era a criatura mais sozinha, que olhava do alto a solidão em sua pureza, de um silêncio incurável. Não era visto por ninguém, era ignorado pelas estrelas, e nos planetas não havia os vestígios das palavras e nem das poesias que se pregam a todas as coisas na Terra.
Parecia, porém, que se estava sozinho com sua respiração, havia um pouco da Terra em seu pesar, souvenirs e existência. Como se fosse um hospedeiro do espaço, propagando pelo seu próprio corpo a poesia perdida e deixada na Terra. Crescera olhando os céus, mas agora eram dos céus que ele olhava. Não negava que em vida soubera ver o encanto de sua própria existência. Mas agora ela era como a primeira gota d’água descoberta, a origem de tudo o mais que queremos segurar nas mãos. Ele alcançara o máximo. E, mesmo com tempestades, sobrevivera. Era um espécime sobrevivente, humano, hospedeiro no espaço. Em suas contas, ele era o impossível.
Tom, então, olhou para as luzes da nave, que piscavam inutilmente em cada botão. Apertou um deles, e com um sorriso, viu a porta se abrindo lentamente. Desnudo, apenas em suas roupas brancas e estupidamente frágeis, desceu as escadas, tocou a poeira e sentiu os últimos instantes de sua mais pura existência.
– Eu nunca quis que você parasse. Mas acho que chegamos ao fim – a voz embargada era mais forte que a falta de ar – Foi bom viajar com você, querida.
Diante da Terra mais azul, espectadora em sua melancolia silenciosa, a respiração deu mais um suspiro, respondeu com um sorriso, e cessou.
Este conto é uma homenagem a David Bowie (1947-2016), que nasceu e morreu nessa semana de janeiro, uma homenagem à genialidade e beleza de suas letras, como Space Oddity, a referência para este conto. Eu o escrevi há cinco anos, e revisando o texto hoje reencontrei essas coincidências estranhas com quarentena, uma doença na Terra, a urgência de respirar, a dor da perda, o isolamento. Por isso resolvi republicar o conto, acho que espantada por ver no meu texto que, de alguma forma, já havia um ensaio da pandemia nele. E esse futurismo parece uma marca de David Bowie.
Imagem de capa e do texto: ilustração de Andrew Kolb para o livro infantil inspirado na música. A montagem virou um vídeo com todas as ilustrações:
Marina, eu perdi a respiração ao ler esse conto. Nossa, me deu desespero em estar no lugar do Tom. Ao mesmo tempo, percebi a analogia que você fez com o nosso período tão delicado. Parabéns! Adorei!
CurtirCurtir
ai Lourdes, vi seu comentário lá no blog, muito obrigada!! mas você acredita que eu escrevi esse texto há 5 anos? eu não mudei nada dele agora. Eu já fazia uma analogia ao tempo atual sem saber!!
CurtirCurtir