BLATTY, William Peter. O exorcista. Tradução de Carolina Caires Coelho. São Paulo: Harper Collins, 2021
Por muitos anos, desde a infância, era só falar em O exorcista que já vinha um medo e frio na espinha. Sem sequer ter assistido ao filme de 1973, eu obviamente conhecia cenas antológicas da obra, mas eu a temia sem de fato conhecê-la. Minha geração era aquela que tomava susto com a “menina do Exorcista” quando ela aparecia nas telas de games, cartões virtuais e vídeos no início do Youtube com mensagens subliminares (sim, isso existia).
Todo ano, me animo com a perspectiva do Halloween, mas nunca tinha coragem de realmente mergulhar nos enredos, por traumas de infância com filmes do gênero. Eu tinha interesse e vontade de assisti-los já adulta, mas a ansiedade nunca deixava. Um medo do próprio medo instaurado. Porém, no fim de setembro, eu me entusiasmei e comprei o livro de William Peter Blatty, O exorcista, a história que originou a adaptação ao cinema.
Não imaginava que devoraria as 334 páginas, das quais sempre tive medo, em três dias, terminando o livro muito antes do dia 31 de outubro. A história me fascinou, o seu ritmo é cortante e agitado. Habitei aquela casa infernal com os personagens por três dias (e um pouquinho de minha madrugada).
O enredo atravessa o desespero de Chris ao ver que sua filha Regan, ainda uma criança de 11 anos, está apresentando sintomas estranhos e uma personalidade desconhecida. A atriz de Hollywood procura uma infinidade de médicos, examinam a criança, descartando uma a uma as possibilidades de um quadro psicológico que estivesse agravando os sintomas. O exorcista parece ser a última opção a se tentar.
De início, o que mais surpreende no livro publicado em 1971 é a responsabilidade e o cuidado ao tratar de ciência e saúde mental. Pois as explicações dadas pelos médicos no livro são muito plausíveis, variadas e cautelosas: a mãe da garota não procura de imediato a religião, mas sim a explicação da ciência. Sabemos, obviamente, que numa ficção temos a possibilidade de crer e até saber mais do que os personagens, principalmente porque para nós já existe a informação de um exorcista logo no título. No entanto, o autor dá tanto realismo à sua história que faz com que o leitor se encontre imerso não apenas no mistério, mas na investigação da doença.
Então o que Regan apresenta pode ser mesmo um quadro psicológico que, na realidade, deve ser sempre investigado antes de qualquer suposição sobrenatural, e tratada com respeito, sem que se reforce a ideia de que questões psicológicas sejam “possessão do demônio”, como já se acreditou por séculos.
A figura do padre
William Peter Blatty é um autor sagaz ao conduzir sua obra. Porque Chris chama o padre Damien Karras, que passa a acompanhar o caso da garota, um padre psiquiatra (ou seja, um encontro entre ciência e fé). Muitas vezes a ciência se sobrepõe à religião na vida do padre Karras, ele está totalmente descrente e em abandono diante da própria fé após perder a mãe. A pressão do sacrifício de sua posição, sempre tendo que ajudar os mais necessitados, é algo difícil de aguentar. Quem presta auxílio àqueles padres bem intencionados que se dispõem a tratar e a cuidar de moradores de rua e pessoas vulneráveis? É aí que entra a psiquiatria, a terapia.
A figura do padre Karras é forte na obra. O jovem padre já está exausto do ofício e ajuda de forma automática. Aceitar o caso de Regan o obriga a se envolver. Pois ajudar, de fato, significa lidar até com as piores partes e se comprometer a partir de uma doação presente. Algo que não pôde fazer pela mãe. E agora se vê precisando fazer por estranhos. Não é apenas como padre que ele opera, mas como psiquiatra e médico. A situação exige um exercício de fé no próprio sentido de doar-se ao próximo, tarefa de um médico, tarefa de um padre. Mas, principalmente, em um sentido de humanidade que vai muito além dos dogmas religiosos.
Por isso é um livro com várias camadas, em que fé e ciência se entrelaçam, com o cuidado de não se criar uma mera superstição em torno do milagre da ciência nem sobre o milagre da religião. Em ambos os casos, ciência e religião lidam com o fato de que sempre haverá lacunas de conhecimento sobre a experiência. É essa dúvida que permeia o livro inteiro e nos conduz a uma obra com um argumento que vai além da mera história de uma garota possuída pelo demônio.
A morte da infância
Há divergências sobre a inocência inata às crianças. Santo Agostinho, no Livro I A Infância, em Confissões, escrito por volta de 397/398, chega a argumentar a partir de suas experiências que a alma das crianças pode ser pecadora, e o exercício da religião como forma de disciplina. É uma questão inesgotável na filosofia, sobre a bondade e a maldade serem ou não inatas ao sujeito, e hoje podemos pensar na questão muito além da religião.
Santo Agostinho considerava vicioso o apetite mesmo no recém-nascido, apesar de não ter como saber ainda que seria um pecado. “A debilidade dos membros infantis é inocente, mas não a alma das crianças” (AGOSTINHO, 1987, p.14), e mesmo que nos soe estranho pensar que a infância, tão considerada incólume nos últimos séculos, teria pecado também, a grande questão que o filósofo atravessa tem um fundo interessante: a de se perguntar quando não houve pecado, já que mesmo na infância da qual não se lembra bem, pedia as coisas com capricho, zangava-se com os pais. E se ele não se lembra exatamente disso, ele finaliza com “que tenho eu que ver com ela [a infância], se nem reminiscências conservo?” (Idem, Ibidem, p.15).
Como a obra Confissões retoma as fases da vida, essa reflexão de Santo Agostinho faz pensar que o encontro entre infância e o diabólico, por meio do terror, é um formato que toca exatamente o medo do descontrole, diretamente associado ao senso comum repetido por muito tempo, da concepção de infância na Idade Média. Hoje a ciência e a psicanálise olham para a infância com outros olhos, retirando-a do estigma do pecado.
Conforme indica o artigo A história da infância: de Santo Agostinho à Rousseau, Santo Agostinho se baseia na concepção neoplatônica de criança. Em A República, Platão estipula que a criança seria ameaçadora e privada de linguagem.
Em O exorcista acontece o contrário. Investiga-se se algumas manifestações de Regan são sugestivas a partir do que já havia ouvido, lido, se tudo era uma manifestação de culpa, mostrando também que o psicológico da criança é extremamente complexa e que deve ser considerada como um ser racional dotado de linguagem.
Se no caso das meninas e mulheres a questão toca a sexualidade e a repressão aos corpos femininos pelo patriarcado, soma-se isso à passagem da infância para a adolescência e o temor aumenta. Porque Regan tem a decepção com o pai como um suposto estopim de suas crises. Algumas falas do demônio são pedófilas e sugerem uma corrupção da pureza da infância da menina, além de um corte com a figura masculina. Então o choque, no enredo, se concentra nesse encontro entre religião, infância e feminino, tudo converge para o medo do descontrole: da menina além do papel feminino e da criança, que deveria estar sob tutela de um adulto.
A verdade é que quem fica ainda mais abalado na trama são os adultos dentro daquela casa, que não mandam mais naquela criança, e eles vão se tornando cada vez mais vulneráveis e retirados de qualquer certeza. Até mesmo porque o livro não se propõe a responder categoricamente se é um caso de possessão ou não. Portanto, página após página o que vemos são adultos se tornando espantados, medrosos e sem recursos diante das grandes dúvidas que envolvem vida, morte e a responsabilidade em proteger uma criança na própria família. Como proteger a infância em um mundo tão duro, e o qual invade até as paredes do lar e da inocência?
O medo da civilização
O livro se inicia com um prólogo se passando no Egito. A trama aposta no desejo do pesquisador, do arqueólogo e do estudioso em acessar a tão sonhada verdade por trás dos mistérios de outra cultura. Desejo esse que fez parte do avanço do cristianismo e, no objeto da catequização, em dominar também expressões distintas de crenças religiosas. O fato do livro se iniciar com a figura misteriosa de um padre diante de uma entidade que o vigia, incontrolável, é uma inversão: aquele que investiga e assume como verdade última pode acabar caindo na armadilha de assumir que domina a resposta do mundo.
Além disso, há um detalhe importante: o fato de que o demoníaco na trama vem de outra cultura não-Ocidental. Comum em algumas tramas de terror, desde o século XIX, encontrar objetos de outras culturas amaldiçoados, demonstra a própria cisão que o olhar europeu ou norte-americano concebem de outros países e costumes.
Não que William Peter Blatty o faça apenas para explorar o teor do curioso e do estranho em outra cultura. Pois se o livro se inicia assim, logo o autor apresenta sutilmente três personagens importantes em sua trama que são imigrantes, enfrentando exclusões, vulnerabilidade social e pobreza: o padre Karras e o casal de empregados da casa, Karl e Willie.
Na matéria do site Querido Clássico, Além do demônio: Damien Karras e o horror social, o assunto é dissecado. Ao fim, o livro nos leva a pensar se o demoníaco não está mais entranhado nas estruturas sociais criadas pelos humanos na dita civilização do que nessa figura sobrenatural. Se o diabo só é um nome para outras coisas mais reais que colocam em risco tantas vidas pelo mundo: a fome, a xenofobia, o abandono.
A beleza que reside no livro O exorcista é o fato de que, mesmo com o mal persistindo na possessão, o amor daquelas pessoas pela criança desafia até o cansaço e os limites do corpo. A mãe vê horrores diante dela. Não se trata apenas de presenciar o abuso e a violência contra a própria filha, mas o sentimento de ter perdido um passado inocente inteiro, dela e o da criança. E, ainda assim, com o pai ausente, é aquela mãe que vai até o inferno pela filha.
Existe uma mistura tênue entre o sentido de dever dos empregados com Chris, e uma consideração e pena por aquela criança inocente. A secretária de Chris não sai de seu lado, ajudando até o limite. Os empregados permanecem limpando tudo e vendo o mais extremo dos horrores. Por vezes a possessão de Regan parece colocar todos no mesmo nível, e em outros demarca mais uma vez as categorias sociais, já que Chris é rica e pode pagar tranquilamente todos os tratamentos da filha, enquanto aqueles que a auxiliam vivem situações dramáticas.
O mal que assusta não é necessariamente o sobrenatural tomando posse de uma casa inteira. Mas das próprias ações humanas, o quanto a vulnerabilidade psicológica pode nos colocar em armadilhas perigosas. Às vezes o medo e o sofrimento são mais profundos no esgotamento que causam do que um demônio. A capacidade do terror é o de mostrar, por meio da ficção, justamente esse contato que temos com a dúvida e o desconhecido em nós mesmos e no mundo.
O exorcista toca em temas clássicos, de ordem cultural, de modo que expande o assunto. Ao silenciar os horrores e os sustos dos demônios, em suas línguas mortas, o que vemos por trás é apenas o desespero humano face à morte e o maior medo da civilização, de não saber dar nome àquilo que não consegue ver e controlar.
Referências bibliográficas
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Coleção Os Pensadores. Tradução de J. Oliveira Santos e A.Ambrósio de Pina; de magistro, tradução de Anngelo Ricci. 4.ed. – São Paulo: Nova Cultural, 1987
Lima, B. C. M. T., & Azevedo, H. H. de O. (2013). A história da infância: de Santo Agostinho à Rousseau. Revista Entreideias: Educação, Cultura E Sociedade, 2(1).
SODRÉ, Mia. Além do demônio: Damien Karras e o horror social. Querido Clássico.
Um comentário em “O exorcista, de William Peter Blatty: as lacunas entre ciência e religião”