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A pediatra, uma anti-heroína cativante

créditos: Marina Franconeti

DEL FUEGO, Andrea. A pediatra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021

Não dá para sair imune à leitura de A pediatra, de Andréa del Fuego. Livro lançado no segundo semestre de 2021, ele já vem ganhando inúmeros fãs da anti-heroína Cecilia e da escrita veloz e poética da autora. Vencedora do Prêmio José Saramago de 2011, Andréa del Fuego é conhecida pelo excelente e marcante livro Os Malaquias, As Miniaturas, assim como o infanto-juvenil A Sociedade da Caveira de Cristal, entre outros. Em A pediatra, Andréa cria uma personagem memorável.

Narrado em primeira pessoa, o livro A pediatra traz a voz de Cecília, uma figura nada fácil. Ela assume ser uma médica mediana apenas fazendo o básico, não gosta de crianças, e basicamente não se comove com ninguém. Na trama, Cecília começa a implicar com uma doula e o médico Jaime, os quais passam a ganhar destaque no hospital onde trabalha. Jaime e a doula representam o parto humanizado, enquanto Cecília é uma neonatologista tradicional, que sabe o “arroz-com-feijão”, com ela mesma diz. Com ares investigativos, de quase um noir debochado e paulistano, o livro vai nos apresentando Cecília, que põe suas manguinhas de fora para tentar fazer algo a respeito diante da sua ameaça de poder, já que o número de partos direcionados a ela começa a diminuir. Junto a isso, Cecília se envolve em um caso extra conjugal com Celso. Detalhe: Cecília fez o parto da esposa dele, já sendo amante.

Com uma escrita ágil, Andrea del Fuego sabe calibrar sua escrita com uma maestria absurda. Cecília fala a linguagem do cotidiano, mas esse cotidiano consegue, por meio da palavra, preservar a riqueza da prosa poética. A fala direta de Cecília, sem travessões, seguindo dia a dia, “uma narrativa rasteira” como diz a autora, nos aproxima demais da personagem, de suas ações e pensamento. Há quem devora o livro em pouco tempo de tão envolvido, há quem resolva ler com calma para apreciar essa linguagem tão bem construída.

O poder da Medicina

Cecília não segue o estereótipo comum que se imagina das pediatras. Associa-se à profissão o amor incondicional pelas crianças às expectativas do feminino, de que mulheres são feitas apenas para cuidar do outro com desprendimento e total doação. Nisso, Cecília é uma curiosa e provocante figura feminina literária. Pois tem posturas machistas, falas que só nós leitores conhecemos com seu testemunho. É um tanto assustador percebermos que estamos como cúmplices de alguém que, ironicamente, não se aproxima de ninguém. É como se tivéssemos acessado a mente secreta de alguém que, para os outros, Cecília passa incólume, justamente por ser médica e especificamente pediatra.

montagem: Marina Franconeti

Este privilégio social concedido pela Medicina é maravilhosamente criticado pelo livro. Algumas coisas que Cecília diz, no fim, também têm sua razão. Pois mesmo a ótima proposta do parto humanizado – que, obviamente, deve acontecer e recepcionar mãe e bebê -, vira um negócio. Tudo é cedido ao capitalismo, da yoga ao parto, tudo vira estilo de vida ostentado em redes sociais. E muitas vezes vidas podem ser postas em risco se o profissional de saúde não souber de sua responsabilidade.

O juramento de Hipócrates já foi rasgado há muito tempo. Temos médicos receitando cloroquina, nutricionistas falhando com as ditas dietas milagrosas para emagrecimento, graduandos se envolvendo em escândalos de assédio sexual, médicos que abusam de pacientes. A violência obstétrica existe e afeta corpos diariamente em hospitais, principalmente de mulheres negras e pobres, enquanto outras podem pagar valores exorbitantes para ter partos cheios de detalhes e cuidados. Quando Cecília fala, é possível repensar que algo de muito errado aconteceu no percurso da Medicina, em que o respeito pelo corpo e pela vida são postos em dúvida.

Ao mesmo tempo, vivemos esse timing surpreendente de ler A pediatra em plena pandemia, quando se encontra uma infinidade de médicos e enfermeiros que cuidaram com afinco de seus pacientes, que verdadeiramente salvaram vidas. Por isso, a leitura cresce muito quando pensamos nas várias perspectivas que se pode ter do assunto.

Maternidade é instinto natural?

Outro assunto forte na obra é o da maternidade e as transformações do parto. Temos Cecília, que se vangloria por estar na “melhor idade”, por não ser mãe e poder ter quem quiser. E em contraste, temos Cacá, a esposa traída de Celso, deixada em casa, enfrentando filho pequeno, gravidez e depressão. Como o livro é contato pela perspectiva de Cecília, vemos pouco de Cacá, e esse apagamento proposital mostra como ela está à margem enquanto mãe.

Já Cecília passa por uma virada no enredo, a qual não irei especificar, mas que a faz pensar sobre maternidade. É posta no lugar desse outro feminino, das várias mães que passam pelo seu consultório, e descobre a vulnerabilidade de amar alguém de forma incondicional. O mais interessante, porém, é a reflexão de que o sentimento materno nasce mais da experiência do que do mero vínculo genético (apesar disso vir, em Cecília, de forma muito dúbia, e bem interessante).

O livro A pediatra é uma leitura muito agradável, cheia de humor e temas tão comuns exprimidos de forma muito original pela autora. É fácil acabar tomando partido de Cecília e se sentir convocada a ver suas várias perspectivas do mundo, encantando-se por uma voz tão humana no papel.

A Andrea é uma amiga querida e por isso mesmo vou dizer aqui que ela ainda é uma baita pesquisadora na área de Filosofia, formada no mesmo departamento que eu, na FFLCH-USP. A sua dissertação de mestrado, defendida sob o título Lavra e Linguagem em Lavoura Arcaica, está disponível no Teses USP, clicando aqui.

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