contos · literatura

Olhá lá, tem uma janela acesa no caos

noite janela

Coluna no Fashionatto

-Aquele suéter caramelo combina com a calça marrom lá de baixo. Fica bem com uma botinha – disse Gabi.

-É, fica bom. Queria ver usar a calça vermelha do 65 com o moletom verde limão lá no varal de cima, sabe?

-Mas ficaria meio estranho, né? Bom, depende, vai que fica diferente.

-Em você ficaria bem, Gabi.

-Uma vez meu amigo disse que eu era a própria arte pop, acho que é porque eu uso muita peça colorida. Espero que seja por isso, e não que eu seja uma refém do consumismo – riu Gabriela equilibrando a xícara de chá no parapeito da sacada.

Marcelo e Gabriela gostavam de se encontrar às 2h para conversar um pouco. Ele chegava de mais uma noite cobrindo plantão na redação de um jornal importante. Ela estudava dia e noite para prestar concurso público. O tema da conversa de hoje era uma brincadeira que Gabriela adorava fazer com a avó e propunha ao Marcelo quase toda semana: observar as roupas dispostas no varal de cada andar do prédio e pensar como ficaria a combinação entre elas.

Gabriela morava no quarto andar e Marcelo, no quinto. A porta de cada apartamento dava para uma sacada que circundava cada andar. Desta forma, havia um abismo que terminava num adorável pátio com banquinhos e vasos de maria-sem-vergonha, lírios, pequenas rosas. Era um prédio antigo que parecia ser um sobrevivente por entre os prédios arrojados de São Paulo. Esses vizinhos dividiam uma curiosidade pela fotografia e pela arquitetura que acabava se tornando um refúgio diário. Marcelo prestara atenção em Gabriela quando a moça resolvia fotografar as crianças brincando no pátio de domingo. Ela olhava para as cenas com o encanto genuíno que ele adorava preservar na profissão.

Apesar das notícias horripilantes que abalavam a estrutura do jovem jornalista e serviam como matéria prima de seu trabalho, o prédio era o refúgio onde Marcelo sentia que ocorriam as cenas mais mágicas que o cotidiano nos faz esquecer. Ele sabia, porém, que essas pequenas cenas ocorriam mundo afora. E gostava de investigá-las todo dia, entre um ônibus e outro, entre uma pauta e outra. Tornar a vida paulistana a sua pauta era o que o fascinava.

clique na imagem para achar o Wally

Os dois eram genuinamente amigos, um carinho e uma amizade que surgiu misteriosamente no horário em que as luzes se apagam e o silêncio predomina.

-Você não acha que deixar a luz acesa do quarto não seja um jeito de criar um farol numa cidade? – perguntou Marcelo com a voz rouca e preguiçosa, sentado ao lado de Gabi no espaço abandonado que havia no topo do prédio.

-Nossa, verdade…é como se a gente deixasse a nossa casa aberta para quem tá sozinho do outro lado…é, pode ser um farol, Ma. Ficar a essa hora sozinho pode ser libertador e triste ao mesmo tempo. Como se o tempo tivesse congelado, as pessoas estivessem dormindo e ninguém pensando em você. Ou sonhando.

-Uhum, gosto de ficar pensando em quem mais está acordado agora. Parece que tem uma rede invisível na cidade, que une as pessoas e às vezes elas nem percebem.

-Como os varais de cada andar…

-Os varais? – questionou Marcelo.

-Sim. Sabe por que eu gosto dessa brincadeira? As pessoas nem imaginam como podem se conectar aos outros. Nem precisam de motivos muito fortes, sabe? Assim como uma peça pode criar looks incríveis, as pessoas são capazes de criar relações únicas, às vezes só falta um primeiro passo…

Marcelo ficou pensando no que Gabi havia dito e resolveu propor uma intervenção meio insana. Ana, uma mocinha tímida do 42, que vivia relendo uma edição já toda desgastada do Guia do Mochileiro das Galáxias havia terminado um namoro há mais de um ano e Gabi sempre conversava com ela, notando a melancolia no olhar da garota. Marcelo, por sua vez, sempre pegava dvds emprestados com Júlio do oitavo andar, um fã fervoroso de cinema e história em quadrinhos. Numa conversa corriqueira, Marcelo e Gabi citaram os dois, notando o quanto os dois vizinhos possuíam a mesma paixão e quase esperança de saírem desse mundo, viajando no tempo para viver qualquer aventura fora dessa dimensão parecia ser idolatrado com fervor ou uma nostalgia de algo que nunca viveriam, só na imaginação.

No dia seguinte, Gabi e Marcelo colocaram em prática uma ideia quase infantil do rapaz, motivado pela presença da amiga, que o fazia olhar para os varais como pequenas coleções de história. Sorrateiramente, de madrugada, trocaram a camiseta de Doctor Who que Júlio adorava ostentar no varal, preso agora no de Ana. Por sua vez, colocaram a doce blusa da mocinha que tinha a imagem do Yoda no varal do rapaz. Em ambos, inseriram um cartãozinho com o nome, o número do apartamento e a frase “você viajaria comigo até o fim do universo?”.

Assim, as ficções que permeavam os varais dos desconhecidos acabaram ganhando contornos mais reais do que se poderia esperar. A luz da janela dos quatro apartamentos fora acesa e acenava para o estranho do outro lado, convidando-o para tomar um café na madrugada acolhedora.

Fiz esse conto inspirado no filme argentino Medianeras . E acabei descobrindo uma música linda que tem a vibe da minha história! Aproveite para ouvir aqui a música Apartamento 26, da banda Call me Lolla

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